CHAUVEAU, Sophie. Leonardo da Vinci - Biografia.pdf

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Prólogo
Excetuando-se Deus, Leonardo é certamente o artista sobre o qual mais se
escreveu.
D
ANIEL
A
RASSE
Kenneth Clark[2], um dos maiores especialistas em Leonardo da Vinci,
emitiu a ideia bastante perspicaz de que a cada geração esse espantoso
personagem deveria ser reinterpretado.
Quando alguém é o símbolo personificado da pintura, da beleza e mesmo
do gênio, deve se adaptar ao gosto de cada época.
Quinhentos anos mais tarde, Da Vinci teve tempo de assumir um grande
número de personalidades. Seus biógrafos sucessivos[3] o reinventaram segundo
a moda de cada época. Ele mesmo embaralhou as pistas e contribuiu bastante
para a própria lenda.
Existem outras grandes figuras na história que tenham sofrido flutuações
biográficas comparáveis? Certamente algumas, dentre as quais aquelas
consideradas como gênios universais... Mas ainda assim Da Vinci continua sendo
o personagem mais complexo e mais controvertido. Não se passa meio século
sem que haja uma nova revisão da sua vida e até mesmo das suas obras, cujo
conceito evolui radicalmente segundo a época. Como devemos nos situar nessa
floresta de contradições?
Dois métodos são aqui utilizados simultaneamente: o confronto e a íntima
convicção. É o que parece mais justo, levando em conta a época em que ele
viveu: Florença e sua efervescência, algumas pequenas revoluções próprias ao
Renascimento, como a emergência do estatuto do artista, as pestes, algumas
viagens comprovadas, algumas referências biográficas devidamente registradas
(contratos, processos, nascimentos, mortes...), algumas ínfimas certezas; enfim, a
verdadeira mudança de perspectiva operada por Leonardo, novo ponto de vista
sobre o mundo no qual, no centro do motivo, não é mais Deus que prima, mas o
homem. Quanto ao resto, há que selecionar entre as diversas versões aquela que
“historicamente” parece a mais provável. E só aceitar as que coincidem pelo
menos três vezes.
Por exemplo, e para começar pelo fim, o famoso quadro de Ingres, no qual,
no instante da sua morte, Francisco I sustenta Leonardo nos braços: nesse dia
preciso em que Leonardo morre, o rei está em Saint-Germain-en-Laye cumprindo
uma obrigação real e paterna, o batizado do seu segundo filho. A
inverossimilhança é total... O melhor, portanto, é ater-se à vida de Leonardo, ao
que dela se sabe e a algumas raras certezas.
Como a do mais humilde dos homens, ela deve começar pelo nascimento,
continuar pelo curso da existência e terminar pela morte. Só que, no caso de
Leonardo, as dificuldades surgem já na origem. Ele nasce em segredo, e não se
sabe onde. Em Vinci, em Anchiano? Na casa da mãe, do pai?
Em compensação, a data do seu batismo é consignada com solenidade no
“livro das lembranças”[4] do seu avô paterno, Antonio. As crianças eram
geralmente batizadas um dia após o nascimento. Portanto, ele teria nascido em 15
de abril de 1452.
A seguir, nada de preciso até os doze, catorze ou dezesseis anos.
Após a morte do avô, ou da primeira esposa do pai – que de certa forma
cuidava dele em Vinci –, ser Piero, seu pai, o faz ir a Florença, onde passará
cerca de vinte anos. Lá ele conhece sucessos magníficos e fracassos
espetaculares. Não obtém o reconhecimento que lhe é devido, tanto a seus olhos
como aos olhos dos seus pares. Alguns problemas com a justiça mancham
gravemente sua reputação. Ele prefere fugir, tentar a sorte na Lombardia, junto a
Ludovico Sforza, duque de Milão. Ali também ficará cerca de vinte anos,
oscilando, como em Florença, entre êxitos e fracassos igualmente retumbantes.
A fase final de sua vida, depois de Milão, por mais uns vinte anos, se passa
na errância e na dependência. Perto do fim teria mesmo sofrido o assédio da
miséria, não tivesse o soberano da França se afeiçoado por ele e lhe oferecido a
hospitalidade real na Touraine.
Onde Leonardo está enterrado? Não há túmulo, nem ossuário. A Revolução
Francesa e o tempo se encarregaram de dispersar o pouco de seus restos mortais.
De forma que esse homem, célebre desde sua juventude até hoje, ou seja,
nos cinco séculos subsequentes à sua morte, não repousa em parte alguma. Mais
vivo do que nunca, continua sendo um mito em contínua reelaboração. Como se
desde o seu desaparecimento ele tivesse aperfeiçoado a lenda que já sentira um
grande prazer em cultivar enquanto vivia.
Seu nome, no mundo inteiro sinônimo de beleza, arte e diletantismo, magia
e graça, absoluto e gênio, faz pensar na medida do mistério que o envolve.
Pois o mais célebre pintor do universo deixou no mundo apenas uma dúzia
de quadros de sua autoria. Inacabados ou danificados... O maior escultor da
humanidade não legou à posteridade nenhum testemunho do seu gênio... O
melhor arquiteto, tampouco... O engenheiro militar que se orgulhava de ter
descoberto o maior número de meios técnicos capazes de ganhar todas as guerras
e de “matar a guerra”[5]1, como dizia, também nada deixou... Quanto ao imenso
cientista, o mais prodigioso inventor de máquinas que o universo jamais
conheceu, seus famosos Cadernos só foram redescobertos muito depois do seu
tempo, quando chegou a hora de inventar “suas” esquecidas descobertas...
Nenhum historiador poderia afirmar seriamente que os desenhos de suas
maravilhosas máquinas não são simples citações, cópias bem informadas de
invenções que pairavam no ar e nas preocupações da época. E, se foram
invenções dele, como teria podido realizá-las? Os materiais indispensáveis à sua
construção ainda não existiam.
Recentemente em Madri, em junho de 2000, num caderno autenticado
como de autoria de Leonardo, descobriu-se o plano detalhado de um paraquedas
piramidal, que permaneceu em segredo até o século XXI. Um rico mecenas
convence um paraquedista inglês, Adrian Nicholas, a testá-lo, saltando de uma
altura de três mil metros no Parque Nacional Kruger, na África do Sul, equipado
com o aparelho voador construído escrupulosamente segundo as indicações de
Leonardo, com a única exceção de que o tecido é de algodão e não de linho. O
velame possui uma armação de madeira de pinho e pesa cerca de cem quilos,
quarenta vezes o peso dos paraquedas atuais. Mesmo assim, a descida se efetua
sem problemas. Os primeiros dois mil metros são percorridos em cinco minutos,
ou seja, muito lentamente. Portanto, esse paraquedas “funciona” de forma
perfeita! Mas é preciso abrir um paraquedas moderno para a última parte da
queda. O modelo de Leonardo não é muito flexível e, sobretudo, é pesado demais
para não se abater sobre o paraquedista na chegada, com o risco de matá-lo.
Algum dia saberemos se essas “invenções” guardadas por quatro ou cinco
séculos, anotadas nos Cadernos, são apenas dele? Seria ele o autor só de
algumas? Quais? Todos os artistas, na época, se copiam mutuamente, anotam a
ideia, o projeto, o plano e mesmo a realização de seus pares quando os julgam
notáveis. De que serve nomear o autor? A invenção é que conta, é que faz
sonhar. Com muita frequência, quem reproduz o sonho de determinada máquina
não é seu criador, mas seu admirador e, no caso de Leonardo, talvez seu
aperfeiçoador. Não sabemos, e certamente nunca saberemos, por quem essas
maravilhosas máquinas foram concebidas. Da bombarda à bicicleta, do
submarino ao paraquedas, do avião ao escafandro, todas essas inovações da nossa
modernidade na verdade prescindiram do seu gênio para vir ao mundo. Eruditos
já as haviam imaginado antes dele. Roger Bacon descreveu quase todas as
máquinas cuja invenção se atribui a Leonardo. E, mesmo se esses planos
extraordinários lhe pertencessem, ele não teria tido nenhuma influência sobre o
mundo científico. Mantidos em segredo nos cadernos que só começam a ser
descobertos em 1880 e que certamente aguardam novas descobertas, seus sonhos
ficaram no estado de sonho, seus projetos são letra morta. Ele não contribuiu,
nem de perto nem de longe, para os progressos da humanidade.
Esse famoso Leonardo não teria então trazido nada ao mundo? Apenas
doze quadros, em sua maioria inacabados e nem todos excelentes. Talvez treze...
Dois afrescos muito danificados.
O maior filósofo da terra, no dizer de Francisco I, também não deixou um
único tratado, não conseguiu acabar uma única das obras – mais de quarenta[6]
projetadas – que a vida inteira sonhou publicar.
O músico, unanimemente louvado por seus pares, improvisava para a
felicidade de todos, como reconhecem os contemporâneos, mas nem ele nem
ninguém nunca se deu o trabalho de traçar a menor nota numa pauta. Nenhuma
de suas composições chegou até nós. Composições que mesmo Josquin des Prés,
o mais talentoso músico do Renascimento, julga, no entanto, da maior
originalidade.
Também não há nenhum vestígio dos insólitos instrumentos de música que
lhe granjearam a glória na corte do duque de Milão. Nenhum desses objetos, tão
enaltecidos pelos cronistas da época, chegou até nós.
Quanto ao Leonardo poeta, tampouco restou uma quadra, um esboço de
versos. Em troca, uma quantidade de adivinhas de extrema crueldade, de chistes
licenciosos ou sibilinos, além de terríveis enigmas, em geral edificantes ou mesmo
moralizadores...
Sabe-se hoje o que basicamente lhe trouxe a glória e o sucesso aos olhos
dos contemporâneos, e que lhe assegurou, se não a fortuna, ao menos a
sobrevivência material: foi seu talento único de encenador, de organizador de
festas geralmente ditas feéricas, que alegraram as horas das cortes nas quais
brilhou. Assim, ele foi antes de tudo um grande, um imenso artista do efêmero, de
uma incrível intrepidez intelectual.
Mas, se buscarmos vestígios, só resta voltar à pintura, único domínio no
qual quase[7] não existem dúvidas.
O que dizer, enfim, da sua descendência pictórica? Discípulos, alunos,
epígonos... Por decência, prefere-se não citar ninguém. Seus “seguidores”
conduzem diretamente à idealização de mau gosto. Eles deixaram, no melhor dos
casos, apenas obras sem a menor imaginação.
Há cinco séculos, no entanto, Leonardo continua sendo o mais famoso dos
pintores, o mais louvado dos artistas! Isso nos leva a crer que a principal de suas
obras foi sua própria vida. E certamente ela foi excepcional. O que hoje ainda não
sabemos dele talvez não coubesse em vários grandes volumes. Basta lembrar que
sua data de nascimento era ainda desconhecida em 1940! O mesmo vale para o
caso Saltarelli[8], que, no imediato pós-guerra, nem sempre era mencionado...
Célebre muito cedo, e mesmo celebrado, incríveis lendas[9] contraditórias
se elaboram durante sua vida e depois de sua morte. Embora os séculos XVII e
XVIII se interessem pouco por ele, o XIX volta a homenageá-lo. Objeto de uma
imensa curiosidade que sempre provocou desconfiança, maledicência e calúnias,
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