Exame Neurológico - 2ªEd. - Gusmão, Campos e Teixeira.pdf

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Capítulo 1
Introdução
“The nervous system is almost entirely inaccessible to direct observation.
As a rule, the state of the nervous system can be ascertained only by the
manner in which its work is done, and morbid states reveal their presence
by the derangement of function which they cause.”
Sir William Gowers (1886)
objetivo da observação clínica é o diagnóstico do estado de saúde do in-
divíduo. A palavra diagnóstico (do grego
diagnostikós,
discernimento)
significa o conhecimento do estado de saúde por meio de manifestações sub-
jetivas (sintomas) e objetivas (sinais).
O conhecimento é o ato pelo qual a pessoa apreende determinado obje-
to, produzindo-se a respectiva representação mental. Há duas maneiras de se
conhecer um objeto. Uma é mediante os sentidos, isto é, quando a informa-
ção é captada pelos órgãos sensoriais; a outra se dá com a participação ativa e
adicional do pensamento, ou seja, o conhecimento se completa no plano inte-
lectual. A utilização de ambas as formas satisfaz as necessidades da vida coti-
diana. Com o desenvolvimento social, verificou-se que o conhecimento pode
ser estendido a partir dessas formas (conhecimento vulgar ou empírico),
chegando a formas próprias para o domínio da natureza (conhecimento
científico), até alcançar formas que buscam apreender a essência das coisas
(conhecimento filosófico).
Na medicina ocidental atual, o diagnóstico médico procura fundamen-
tar-se essencialmente no conhecimento científico. Este tipo de conhecimento
resulta da investigação sistemática dos fenômenos naturais com o objetivo de
estabelecer não só a constância de sua ocorrência, mas também a constância
de suas eventuais relações, culminando com sua reprodução experimental.
Nesse esforço, a avaliação dos fenômenos, a constância dos mesmos e de sua
eventual inter-relação se estendem do plano qualitativo ao quantitativo, cul-
minando com a sua expressão matemática.
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A medicina científica iniciou-se pela aceitação do corpo de doutrinas
médicas atribuídas a Hipócrates, segundo as quais as doenças decorrem de
causas naturais em vez de sobrenaturais. Daí o diagnóstico passou a se basear
na observação de sistemática de sintomas e sinais produzidos caracteristica-
mente pelas doenças, buscando-se as manifestações constantes e encontrá-
veis nos diversos pacientes com a mesma doença. Ao longo dos séculos, veri-
ficou-se que o conjunto de queixas espontâneas e de sinais manifestos era
passível, inclusive por inf luência de outras ciências, de estender-se para além
de seu repertório tradicional. Na metade do século XVIII, Morgagni, entre
outros, comprovou que a doença poderia ser identificada nos órgãos e que os
sintomas e sinais eram determinados pela alteração anatômica observada, ou
seja, a doença observada na necropsia corresponderia, no indivíduo vivo, a
sinais clínicos (correlação anatomoclínica).
Partiu-se daí para a busca de métodos que colocassem órgãos inacessíveis
em contato com os sentidos do médico. Auenbrugger (1761) e Laennec
(1819), que introduziram, respectivamente, a percussão do tórax e o estetoscó-
pio, inauguraram uma nova era na clínica, possibilitando a identificação de si-
nais físicos até então com difícil acesso ou não facilmente observados. Assim, a
simples observação hipocrática dos sinais e sintomas, em geral espontâneos,
passou a ser complementada com a busca sistemática dos sinais.
Na segunda metade do século XIX, Claude Bernard sistematiza os méto-
dos experimentais da medicina, tornando possível o acesso por meio de
dados laboratoriais às disfunções provocadas pelas várias alterações orgâni-
cas. Assim, a investigação clínica dos sintomas e sinais observados no corpo
(exame clínico) é complementada pela pesquisa de sinais obtidos em exames
laboratoriais (exames complementares). A consolidação da medicina experi-
mental, como ciência, se deu graças aos resultados obtidos, entre outros, por
Pasteur, Koch, Virchow e Cajal. O acúmulo de tais conquistas e suas decor-
rências no final do século XIX estimulou, então, a idéia de que a atitude cien-
tífica e a familiaridade com os métodos da medicina experimental devam
constituir a base da formação do médico.
Especulações futuristas sugerem o advento para breve do diagnóstico
direto (e não mais complementar) por aparelhagem cada vez mais simplifica-
da, com alto índice de miniaturização, de portabilidade e até de descartabili-
dade, o que eliminaria o dispêndio de tempo com prolongadas anamneses e
minuciosos exames físicos. Infelizmente, a obsolescência antecipada dos
recursos semiológicos clássicos tem prejudicado principalmente os pacien-
tes, além de denegrir o exercício clínico e, em conseqüência, a imagem pro-
fissional do médico. Assim, razões éticas e científicas sustentam a manuten-
ção da hierarquia metodológica de anamnese, exame físico e exames comple-
mentares na prática médica atual. Quatro outros argumentos reforçam essas
razões. O primeiro é a crescente e salutar retroalimentação que se estabelece
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entre a sensibilidade para detectar sintomas e sinais, de um lado, e, de outro,
a capacidade para o raciocínio fisiopatológico, este condicionado pela cultu-
ra nosológica do examinador. O segundo é a possibilidade de manter a ne-
cessária capacidade diagnóstica do examinador na eventualidade de se
encontrar desarmado de qualquer recurso tecnológico. O terceiro é o reco-
nhecido papel da anamnese e do exame físico em estabelecer e em enrique-
cer a relação médico-paciente. O quarto é a própria sobrevivência do médico
como profissional em seu perfil clássico, pois as mesmas especulações prevê-
em a extinção de tal perfil ou da própria profissão caso venhamos a prescin-
dir de tais exames. Esta última possibilidade parece improvável, pois a pró-
pria história da medicina indica o caráter cumulativo e não substitutivo dos
sucessivos modos de exercício profissional. Resta saber que tipo de convivên-
cia haverá entre o perfil robótico do profissional emergente e o perfil huma-
no do profissional clássico.
A observação clínica permite que a doença seja diagnosticada por meio
de suas manifestações fundamentais que são os sintomas e os sinais. À pri-
meira vista, as manifestações subjetivas seriam os sintomas, e as objetivas se-
riam os sinais. Ao longo do tempo, entretanto, consagrou-se a separação
imprecisa de tais termos, denotada pela distinção adicional entre sintomato-
logia subjetiva e objetiva. Por outro lado, semiologicamente o sintoma é um
sinal. Assim, para simplificar, é melhor definir sintoma como sinal subjetivo
ou objetivo que comparece como queixa do paciente. E sinal clínico propria-
mente dito é a manifestação objetiva detectada pelo médico ou apontada, sob
indagação, pelo próprio paciente ou por terceiros.
O paciente pode queixar-se manifestações subjetivas como dor, mal-estar,
formigamento e pode, ainda, queixar-se manifestações objetivas interpretadas
pelo médico como exoftalmia, edema, hematúria. Um acompanhante pode
descrever para o médico os sinais da crise epiléptica do paciente, a qual pode
também ser presenciada pelo próprio médico, que verificará com plena objeti-
vidade a seqüência característica dos mesmos sinais clínicos. O exemplo da cri-
se epiléptica é ilustrativo porque nela podem manifestar-se alterações psíqui-
cas que não podem ser observadas pelo médico, exceto se relatada como quei-
xa espontânea ou como resposta durante o interrogatório. A crise epiléptica,
aliás, era considerada na semiologia clássica como o único quadro clínico
impossível de ser simulado até que um ator o conseguiu com êxito.
Síndrome é um conjunto característico de sintomas e/ou sinais com
denominação específica. A crise epiléptica, citada no exemplo anterior,
designa uma síndrome. Como os sinais e os sintomas compõem a síndrome,
esta pode compor várias doenças. Ainda no exemplo citado, a síndrome da
crise epiléptica pode aparecer em mais de uma doença, por exemplo, a neu-
rocisticercose e o trauma do encéfalo. Curioso é o caso da AIDS (acrônimo
em inglês do termo
Acquired Immunodeficiency Syndrome)
ou SIDA (correspon-
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dente do acrônimo em português, “Síndrome de Imunodeficiência Adquiri-
da”). Geralmente a sigla tem sido usada como se tratasse de doença e não de
síndrome. Para o uso semiologicamente correto, a doença seria designada
como virose causadora de imunodeficiência, virose imunossupressora ou
então imunodeficiência adquirida por vírus, já que a AIDS ou SIDA, sendo
síndrome, pode ser causada não apenas por uma espécie ou família de vírus,
mas também por qualquer fator etiológico adquirido.
Esquematicamente, o
sintoma
corresponde ao
alarme
do organismo para
fugir da lesão ou para evitar agravá-la, o
sinal
corresponde à lesão e, como tal,
esboço do
diagnóstico anatômico,
a
síndrome
corresponde ao
diagnóstico funcio-
nal
(quadro fisiopatológico), e a
doença
corresponde ao
diagnóstico etiológico
(quando se espera do examinador apontar uma única causa capaz de explicar
todas as manifestações clínicas observadas). A ilustração mais conhecida de
tal esquema é a
inflamação,
em que o sintoma
dor
se acompanha dos sinais
tu-
mor, rubor
e
calor,
tudo levando à
perda
(parcial ou total, reversível ou não)
da
função
de que é capaz a estrutura anatômica acometida. Então se conclui que
a inf lamação é uma
síndrome.
Se tal síndrome acomete, por exemplo, uma
articulação, há várias doenças que podem causá-la, por exemplo, o trauma,
uma bactéria ou a doença reumática. Convém aqui lembrar que não é corre-
to chamar neste caso o trauma, a bactéria ou a causa mal conhecida de etiolo-
gias, pois a palavra
etiologia
não tem esta significação substantivada, assim
como não se deve chamar um quadro patológico de
patologia.
O vigor e a eficácia dos conceitos de sintoma, sinal, síndrome e doença
estão relacionados ao caráter racional e lógico da cultura ocidental e de sua
expressão científica. Desde a medicina grega, o conhecimento e a vitória
sobre as doenças vêm-se ampliando exatamente porque a medicina assumiu
uma linguagem que permite ao médico, de certa maneira, dialogar com o
organismo doente. Nesse caso, os sintomas e os sinais seriam as letras, as sín-
dromes seriam as palavras e as doenças seriam as sentenças.
Os sintomas e os sinais mais valorizados na semiologia clássica são os
essenciais e os patognomônicos. Essenciais são aqueles cuja ausência põe em
dúvida o diagnóstico de uma síndrome ou de uma doença. Patognomônico
(do grego
pathos,
doença,
gnomon,
indicador) é aquele que, por si só, respon-
de pelo diagnóstico de uma síndrome ou de uma doença.
A doutrina semiológica clássica aconselha o médico a esboçar o diagnós-
tico puramente clínico, ou seja, por meio apenas da anamnese e do exame
físico, e, ao fazê-lo deve procurar expressá-lo em termos anatômico, funcio-
nal e etiológico. Essa orientação não significa o interesse de colocar à prova a
habilidade diagnóstica do profissional, mas de habituá-lo aos caminhos do
raciocínio clínico, que, com o tempo, acaba consolidando sua competência
pessoal intransferível. Quando isso não acontece, o médico – na contramão
desse hábito salutar – vai-se tornando cada vez mais dependente de exames
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